``Teu jardim é um palco pra brincar de vida
Chove um dia sua retina
A gente nunca acerta uma rotina
Como o tempo
(...)``
Desceu da espaçonave como um astronauta que retorna a Terra. Aclamaram até lhe rasgar a camisa, com direito a arritmia cardíaca de Dona Lígia. A sombra que esperava não apareceu e isto não foi motivo para fazer de sua festa menos especial. Procurou logo um prato típico no cardápio e deu sorte de ser sábado. A feijoada tapou um buraco no estômago não descoberto por todos aqueles três anos que passara na África.
Cuidaram de levar suas bagagens e até abriram a porta de trás do táxi para se acomodar. Seu Ítalo tratou de contar algumas novidades, das quais já sabia graças às conversas pela webcam. Não morrera ninguém, não enriquecera ninguém, o que se trazia eram apenas fanfarrões que bebiam demais e senhoras exaltadas que erravam na conferência do troco.
Encantou-se por alguns minutos quando passaram perto do metrô Bresser. Alguns tapumes impossibilitavam a visão do terreno que fizera o bota-fora. Subiriam um conjunto de seis edifícios e teria academia, aula de música, natação e muito mais lá dentro. Um luxo que só o Jardins oferecia na cidade de pedra.
Logo que terminou a espichada de preguiça, fechou a porta do carro e o conduziram a antiga casa que passara toda infância. Preparam bexigas, salgadinhos, amigos, uma faixa de saudações e uma geladeira recheada de cervejas. Por horas não conseguiu contar nada da viagem, apenas respondendo questionários elaborados a partir de cartões postais. Um o reparou mais magro, outro mais bonito, aquele sentado no canto da mesa preferiu ir conversar depois que toda a tempestade passou. Sentou e conseguiu fazer um sanduíche. Especialidade de Dona Lígia, pão com carne louca.
Sentiu um vulto rondar-lhe as costas e quando olhou reparou numa mangeira de braços com a cabeça cheia de espinhas. Se abraçaram e lembrou ser aquele menininho pentelho sobrinho de Dona Lígia com poucos centímetros de altura. A tia engordara, mas a comissão de frente continuava um outdoor. O tio ainda era um grande idiota e comentava sobre tudo conhecendo muito pouco.
Depois de sete ou oito latas de cerveja e vendo o quintal de casa inundado de corpos sentados sem assunto, reparou que a noite é mais calma em São Paulo. Viu que ninguém dera jeito no canto da porta da cozinha, que as paredes precisavam de mãos de tinta, e pelo Cinzano quase no fim, ou seu Ítalo passara a freqüentar a casa com mais freqüência, ou dona Lígia tornara-se uma alcoólatra após as costuras.
No fim do dia, a ausência de três anos caminhou pela cozinha, passou pela sala, fechou a porta de madeira e sumiu.
De manhã tratou de rever a coleção de discos. Os livros estavam todos empoeirados. Seu quarto virara abrigo de traças e Dona Lígia ouviu alguns disparates de filho pelo cheiro de fechado que permaneceu naquele cantinho de casa. A próprio pedido abriu as janelas, desfez as malas, percebeu que voltara quase com as mesmas roupas e despejou os novos volumes literários nas duas estantes que preenchiam quase todo o espaço do quarto.
Em Moçambique conheceu uma garota que falava português tão lindo quanto em Coimbra. Era poeta e lhe deu um livreto de poemas. Depois de insistir em encontrar-se mais duas vezes também lhe deu um beijo e um boa noite ao pé do ouvido. Aquele volume ficaria na cabeceira de sua cama, por que sempre que fosse começar uma leitura, lembraria dos bons usos da língua. Com uma flanela úmida deu vida ao canto de solidão.
Um pouco mais tarde alguns amigos vieram visitá-lo. Passaram horas jogando futebol pela televisão, deram algumas risadas, e pouco falaram sobre a África. Combinaram de ir ao Tatuapé mais a noite. Acendeu um esquentamento no estômago e lembrou que havia sido lá a primeira conversa sobre o intercâmbio e o último abraço que dera àquela sombra.
- Ricardo Celestino